sexta-feira, 17 de julho de 2009

[Comentários Apologéticos] Razão e Revelação

2º Domingo do Advento (Segundo a forma extraordinária do Rito Romano)

Evangelho: Mt 11, 2-10

2. Tendo João, em sua prisão, ouvido falar das obras de Cristo, mandou-lhe dizer pelos seus discípulos:

3. Sois vós aquele que deve vir, ou devemos esperar por outro?

4 .Respondeu-lhes Jesus: Ide e contai a João o que ouvistes e o que vistes:

5. os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, o Evangelho é anunciado aos pobres...

6. Bem-aventurado aquele para quem eu não for ocasião de queda!

7. Tendo eles partido, disse Jesus à multidão a respeito de João: Que fostes ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento?

8. Que fostes ver, então? Um homem vestido com roupas luxuosas? Mas os que estão revestidos de tais roupas vivem nos palácios dos reis.

9. Então por que fostes para lá? Para ver um profeta? Sim, digo-vos eu, mais que um profeta.

10. É dele que está escrito: Eis que eu envio meu mensageiro diante de ti para te preparar o caminho

Comentário Apologético

Lendo com atenção o Evangelho de hoje, notamos que ele é a expressão de certa inquietação.

Os discípulos de João Batista querem saber se Jesus é o Messias esperado, ou se devem esperar por outro.

Jesus responde a estas dúvidas, mostrando as suas obras, para que o julguem conforme estas obras.

Domingo passado, provávamos a existência de Deus: hoje damos mais um passo avante e respondemos a uma certa inquietação que nos invade a respeito de Deus.

Deus existe: é certo, mas podemos nós pelas luzes da nossa razão conhece-lo plenamente, ou precisamos de outra luz para penetrar seus aparentes segredos?

Resolvamos esta dúvida, examinando:

1º. O que pode a razão humana.

2º. O que não pode por si mesma.

Será um duplo raio de luz lançado sobre o grande mistério da união da razão e revelação.

I – O que pode a razão humana

A nossa razão pode dar-nos umas noções sobre Deus, porém, muito limitadas e incompletas.

A nossa razão é muito limitada. Ela é para as coisas intelectuais o que é o nosso olhar para as coisas materiais: vê apenas certas coisas e não percebe nada até no fundo.

A nossa razão é finita: Deus é infinito, de modo que podemos ver apenas o que está ao nosso alcance, todo o resto nos escapa.

Remontando da sua própria existência e das criaturas, a nossa própria razão pode conhecer a existência de Deus, o seu poder criador; e refletindo, pode formar-se uma idéia de certos atributos de Deus, como a sua unidade, sua eternidade, sua justiça, bondade, etc.

Temos pois uma idéia de Deus; e notemos que tal idéia é já uma prova da existência de Deus, pois o homem é incapaz de ter a idéia de uma coisa inexistente, em partes ou em seu todo.

Deus assim concebido permanece entretanto um ser incompreensível, misterioso:

a) em sua natureza, que ultrapassa infinitamente toda natureza criada;

b) em suas perfeições, que incluem todas as perfeições;

c) em seus decretos que são impenetráveis;

d) em suas obras que o manifestam, mas não o mostram senão velado, misterioso.

A nossa razão precisa, pois, de um auxílio que lhe permita penetrar mais no fundo das verdades entrevistas, do mesmo modo como a nossa vista, para enxergar o que ultrapassa o seu raio visual, precisa de um instrumento, para penetrar além.

O olho nu vê certas coisas, com um binóculo vê mais longe, com uma luneta penetra mais além ainda.

Este auxílio, este instrumento que nos permite ver mais longe, mais claramente, chama-se Revelação Divina, ou a voz de Deus, explicando-nos o que não compreendemos.

II – O que não pode a razão

A razão, como acabamos de ver, tem o seu circulo visual determinado e limitado. Existência de Deus, imortalidade da alma, princípios da lei natural: eis o seu horizonte.

Para conhecer as verdades de ordem sobrenatural, a razão precisa absolutamente de uma voz reveladora, e esta voz chama-se: a revelação.

Deus, diz o Apóstolo, tendo falado outrora muitas vezes e de muitos modos a nossos pais pelos profetas, ultimamente nesses dias falou-nos por meio de seu Filho (Heb 1, 1-2).

Esta voz de Jesus Cristo ensinando-nos a verdade é o caminho sobrenatural: como um complemento do caminho natural da razão.

Há sobretudo três verdades importantes que a nossa razão não pode conhecer. São:

- A origem das misérias humanas;

- Os meios de expiação;

- Os destinos futuros do homem.

Para estas verdades a revelação é absolutamente necessária.

Ela é moralmente necessária para serem plenamente conhecidos e com certeza os preceitos da lei natural, que devem guiar a nossa vida e os quais a razão pode apenas distinguir vagamente.

Antes do pecado original, os nossos primeiros pais conheciam perfeitamente o bem e o mal; depois do pecado a razão humana ficou obscurecida, enfraquecida e como paralisada pelas paixões que nos dominam, falsificam a nossa vista intelectual, e nos fazem tomar o mal pelo bem e o bem pelo mal, como dizia o Apóstolo: o homem faz às vezes o mal que não quer, e não faz o bem que quer (Rm 7, 19).

É um fato de experiência que um povo sem sacerdotes para instruí-lo e exortá-lo cai inevitavelmente na ignorância das verdades da ordem natural.

É preciso que os princípios da lei natural lhe sejam, vez ou outra, claramente formulados, frequentemente repetidos e incutidos com vigor, senão, em breve, ficam alterados ou esquecidos.

“deixem uma paróquia sem sacerdote – dizia o santo Cura D’Ars – durante vinte anos, e os seus habitantes adorarão os animais!”

O povo precisa ser instruído até nos princípios da lei natural; com quanto mais razão nos princípios da lei sobrenatural.

III – Conclusão

Eis pois duas verdades bem esclarecidas: a nossa razão enfraquecida pode conhecer a existência de Deus e umas outras verdades elementares, porém tudo bastante superficialmente; para um conhecimento total, sobrenatural, precisamos do auxílio da revelação divina.

As conseqüências destas revelação em nossa razão são imensas e admiráveis.

É a revelação que reforma as idéias inexatas, esclareces as idéias confusas, tornando impossíveis a inquietação e a dúvida.

A razão nos mostra que a alma é incorruptível; a fé nos diz que é imortal.

A razão indica uma vida futura; a fé nos dá uma promessa positiva da mesma.

A razão entrevê recompensas e castigos; a fé nos mostra a sua extensão e natureza.

A razão vislumbra um destino futuro; a fé no-lo apresenta luminoso e indica os meios de adquiri-lo.

A razão nos esmaga sob o peso das nossas misérias; a fé nos levanta pela misericórdia divina.

Em suma: a revelação satisfaz todas as aspirações do homem:

- O nosso espírito precisa de uma doutrina certa: a revelação lhe dá.

- Ele precisa de um código moral: a revelação lhe fornece.

- Ele precisa de uma lei social de caridade: a revelação lhe ministra.

- Ele precisa de conselhos de perfeição: a revelação os dá.

Exemplos

1 – Resposta de um filósofo

Pode-se definir Deus, porém toda definição é humana e incompleta.

Um dia uma comissão de estudantes foi ter com seu professor de filosofia, pedindo que lhes dissesse claramente o que é Deus.

- Pensarei, respondeu ele, voltem depois de uma semana.

Oito dias depois a comissão está de novo com seu professor, pedindo a resposta.

- Pensarei, voltem depois de uma semana.

Após uma semana, nova pergunta, e idêntica resposta.

- Mas, exclamaram os estudantes, é sempre a mesma resposta... até quando devemos voltar depois de oito dias?

- Até o fim da vida, respondeu o filósofo, pois Deus é tão grande que é impossível fazer dele uma definição perfeita.

2 – Morte de Garcia Moreno

Garcia Moreno era presidente da República do Equador.

Católico fervoroso, tinha atraído o ódio da maçonaria, que resolveu suprimi-lo.

Em 6 de agosto de 1875, Garcia tinha comungado antes de abrir solenemente a sessão legislativa.

Nesse mesmo dia caiu assassinado pelos sicários... E caindo exclamou:

- Deus não morre! E exalou o último suspiro.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Vésperas de Inauguração do Ano Sacerdotal em Roma







[Atualidade] Ano Sacerdotal

CARTA DO SUMO PONTÍFICE
BENTO XVI
PARA A PROCLAMAÇÃO
DE UM ANO SACERDOTAL
POR OCASIÃO DO 150º ANIVERSÁRIO
DO DIES NATALIS DO SANTO CURA D’ARS


Amados irmãos no sacerdócio,

Na próxima solenidade do Sacratíssimo Coração de Jesus, sexta-feira 19 de Junho de 2009 – dia dedicado tradicionalmente à oração pela santificação do clero – tenho em mente proclamar oficialmente um «Ano Sacerdotal» por ocasião do 150.º aniversário do «dies natalis» de João Maria Vianney, o Santo Patrono de todos os párocos do mundo.[1] Tal ano, que pretende contribuir para fomentar o empenho de renovação interior de todos os sacerdotes para um seu testemunho evangélico mais vigoroso e incisivo, terminará na mesma solenidade de 2010. «O sacerdócio é o amor do Coração de Jesus»: costumava dizer o Santo Cura d’Ars.[2] Esta tocante afirmação permite-nos, antes de mais nada, evocar com ternura e gratidão o dom imenso que são os sacerdotes não só para a Igreja mas também para a própria humanidade. Penso em todos os presbíteros que propõem, humilde e quotidianamente, aos fiéis cristãos e ao mundo inteiro as palavras e os gestos de Cristo, procurando aderir a Ele com os pensamentos, a vontade, os sentimentos e o estilo de toda a sua existência. Como não sublinhar as suas fadigas apostólicas, o seu serviço incansável e escondido, a sua caridade tendencialmente universal? E que dizer da fidelidade corajosa de tantos sacerdotes que, não obstante dificuldades e incompreensões, continuam fiéis à sua vocação: a de «amigos de Cristo», por Ele de modo particular chamados, escolhidos e enviados?

Eu mesmo guardo ainda no coração a recordação do primeiro pároco junto de quem exerci o meu ministério de jovem sacerdote: deixou-me o exemplo de uma dedicação sem reservas ao próprio serviço sacerdotal, a ponto de encontrar a morte durante o próprio acto de levar o viático a um doente grave. Depois repasso na memória os inumeráveis irmãos que encontrei e encontro, inclusive durante as minhas viagens pastorais às diversas nações, generosamente empenhados no exercício diário do seu ministério sacerdotal. Mas a expressão utilizada pelo Santo Cura d’Ars evoca também o Coração traspassado de Cristo com a coroa de espinhos que O envolve. E isto leva o pensamento a deter-se nas inumeráveis situações de sofrimento em que se encontram imersos muitos sacerdotes, ou porque participantes da experiência humana da dor na multiplicidade das suas manifestações, ou porque incompreendidos pelos próprios destinatários do seu ministério: como não recordar tantos sacerdotes ofendidos na sua dignidade, impedidos na sua missão e, às vezes, mesmo perseguidos até ao supremo testemunho do sangue?

Infelizmente existem também situações, nunca suficientemente deploradas, em que é a própria Igreja a sofrer pela infidelidade de alguns dos seus ministros. Daí advém então para o mundo motivo de escândalo e de repulsa. O máximo que a Igreja pode recavar de tais casos não é tanto a acintosa relevação das fraquezas dos seus ministros, como sobretudo uma renovada e consoladora consciência da grandeza do dom de Deus, concretizado em figuras esplêndidas de generosos pastores, de religiosos inflamados de amor por Deus e pelas almas, de directores espirituais esclarecidos e pacientes. A este respeito, os ensinamentos e exemplos de S. João Maria Vianney podem oferecer a todos um significativo ponto de referência. O Cura d’Ars era humilíssimo, mas consciente de ser, enquanto padre, um dom imenso para o seu povo: «Um bom pastor, um pastor segundo o coração de Deus, é o maior tesouro que o bom Deus pode conceder a uma paróquia e um dos dons mais preciosos da misericórdia divina».[3] Falava do sacerdócio como se não conseguisse alcançar plenamente a grandeza do dom e da tarefa confiados a uma criatura humana: «Oh como é grande o padre! (…) Se lhe fosse dado compreender-se a si mesmo, morreria. (…) Deus obedece-lhe: ele pronuncia duas palavras e, à sua voz, Nosso Senhor desce do céu e encerra-se numa pequena hóstia».[4] E, ao explicar aos seus fiéis a importância dos sacramentos, dizia: «Sem o sacramento da Ordem, não teríamos o Senhor. Quem O colocou ali naquele sacrário? O sacerdote. Quem acolheu a vossa alma no primeiro momento do ingresso na vida? O sacerdote. Quem a alimenta para lhe dar a força de realizar a sua peregrinação? O sacerdote. Quem a há-de preparar para comparecer diante de Deus, lavando-a pela última vez no sangue de Jesus Cristo? O sacerdote, sempre o sacerdote. E se esta alma chega a morrer [pelo pecado], quem a ressuscitará, quem lhe restituirá a serenidade e a paz? Ainda o sacerdote. (…) Depois de Deus, o sacerdote é tudo! (…) Ele próprio não se entenderá bem a si mesmo, senão no céu».[5]Estas afirmações, nascidas do coração sacerdotal daquele santo pároco, podem parecer excessivas. Nelas, porém, revela-se a sublime consideração em que ele tinha o sacramento do sacerdócio. Parecia subjugado por uma sensação de responsabilidade sem fim: «Se compreendêssemos bem o que um padre é sobre a terra, morreríamos: não de susto, mas de amor. (…) Sem o padre, a morte e a paixão de Nosso Senhor não teria servido para nada. É o padre que continua a obra da Redenção sobre a terra (…) Que aproveitaria termos uma casa cheia de ouro, senão houvesse ninguém para nos abrir a porta? O padre possui a chave dos tesouros celestes: é ele que abre a porta; é o ecónomo do bom Deus; o administrador dos seus bens (…) Deixai uma paróquia durante vinte anos sem padre, e lá adorar-se-ão as bestas. (…) O padre não é padre para si mesmo, é-o para vós».[6]

Tinha chegado a Ars, uma pequena aldeia com 230 habitantes, precavido pelo Bispo de que iria encontrar uma situação religiosamente precária: «Naquela paróquia, não há muito amor de Deus; infundi-lo-eis vós». Por conseguinte, achava-se plenamente consciente de que devia ir para lá a fim de encarnar a presença de Cristo, testemunhando a sua ternura salvífica: «[Meu Deus], concedei-me a conversão da minha paróquia; aceito sofrer tudo aquilo que quiserdes por todo o tempo da minha vida!»: foi com esta oração que começou a sua missão.[7] E, à conversão da sua paróquia, dedicou-se o Santo Cura com todas as suas energias, pondo no cume de cada uma das suas ideias a formação cristã do povo a ele confiado. Amados irmãos no sacerdócio, peçamos ao Senhor Jesus a graça de podermos também nós assimilar o método pastoral de S. João Maria Vianney. A primeira coisa que devemos aprender é a sua total identificação com o próprio ministério. Em Jesus, tendem a coincidir Pessoa e Missão: toda a sua acção salvífica era e é expressão do seu «Eu filial» que, desde toda a eternidade, está diante do Pai em atitude de amorosa submissão à sua vontade. Com modesta mas verdadeira analogia, também o sacerdote deve ansiar por esta identificação. Não se trata, certamente, de esquecer que a eficácia substancial do ministério permanece independentemente da santidade do ministro; mas também não se pode deixar de ter em conta a extraordinária frutificação gerada do encontro entre a santidade objectiva do ministério e a subjectiva do ministro. O Cura d’Ars principiou imediatamente este humilde e paciente trabalho de harmonização entre a sua vida de ministro e a santidade do ministério que lhe estava confiado, decidindo «habitar», mesmo materialmente, na sua igreja paroquial: «Logo que chegou, escolheu a igreja por sua habitação. (…) Entrava na igreja antes da aurora e não saía de lá senão à tardinha depois do Angelus. Quando precisavam dele, deviam procurá-lo lá»: lê-se na primeira biografia.[8]

O exagero devoto do pio hagiógrafo não deve fazer-nos esquecer o facto de que o Santo Cura soube também «habitar» activamente em todo o território da sua paróquia: visitava sistematicamente os doentes e as famílias; organizava missões populares e festas dos Santos Patronos; recolhia e administrava dinheiro para as suas obras sócio-caritativas e missionárias; embelezava a sua igreja e dotava-a de alfaias sagradas; ocupava-se das órfãs da «Providence» (um instituto fundado por ele) e das suas educadoras; tinha a peito a instrução das crianças; fundava confrarias e chamava os leigos para colaborar com ele.

O seu exemplo induz-me a evidenciar os espaços de colaboração que é imperioso estender cada vez mais aos fiéis leigos, com os quais os presbíteros formam um único povo sacerdotal[9] e no meio dos quais, em virtude do sacerdócio ministerial, se encontram «para os levar todos à unidade, “amando-se uns aos outros com caridade fraterna, e tendo os outros por mais dignos” (Rm 12, 10)».[10] Neste contexto, há que recordar o caloroso e encorajador convite feito pelo Concílio Vaticano II aos presbíteros para que «reconheçam e promovam sinceramente a dignidade e participação própria dos leigos na missão da Igreja. Estejam dispostos a ouvir os leigos, tendo fraternalmente em conta os seus desejos, reconhecendo a experiência e competência deles nos diversos campos da actividade humana, para que, juntamente com eles, saibam reconhecer os sinais dos tempos». [11]

O Santo Cura ensinava os seus paroquianos sobretudo com o testemunho da vida. Pelo seu exemplo, os fiéis aprendiam a rezar, detendo-se de bom grado diante do sacrário para uma visita a Jesus Eucaristia.[12] «Para rezar bem – explicava-lhes o Cura –, não há necessidade de falar muito. Sabe-se que Jesus está ali, no tabernáculo sagrado: abramos-Lhe o nosso coração, alegremo-nos pela sua presença sagrada. Esta é a melhor oração».[13] E exortava: «Vinde à comunhão, meus irmãos, vinde a Jesus. Vinde viver d’Ele para poderdes viver com Ele».[14] «É verdade que não sois dignos, mas tendes necessidade!».[15] Esta educação dos fiéis para a presença eucarística e para a comunhão adquiria um eficácia muito particular, quando o viam celebrar o Santo Sacrifício da Missa. Quem ao mesmo assistia afirmava que «não era possível encontrar uma figura que exprimisse melhor a adoração. (...) Contemplava a Hóstia amorosamente».[16] Dizia ele: «Todas as boas obras reunidas não igualam o valor do sacrifício da Missa, porque aquelas são obra de homens, enquanto a Santa Missa é obra de Deus».[17] Estava convencido de que todo o fervor da vida de um padre dependia da Missa: «A causa do relaxamento do sacerdote é porque não presta atenção à Missa! Meu Deus, como é de lamentar um padre que celebra [a Missa] como se fizesse um coisa ordinária!».[18] E, ao celebrar, tinha tomado o costume de oferecer sempre também o sacrifício da sua própria vida: «Como faz bem um padre oferecer-se em sacrifício a Deus todas as manhãs!».[19]

Esta sintonia pessoal com o Sacrifício da Cruz levava-o – por um único movimento interior – do altar ao confessionário. Os sacerdotes não deveriam jamais resignar-se a ver os seus confessionários desertos, nem limitar-se a constatar o menosprezo dos fiéis por este sacramento. Na França, no tempo do Santo Cura d’Ars, a confissão não era mais fácil nem mais frequente do que nos nossos dias, pois a tormenta revolucionária tinha longamente sufocado a prática religiosa. Mas ele procurou de todos os modos, com a pregação e o conselho persuasivo, fazer os seus paroquianos redescobrirem o significado e a beleza da Penitência sacramental, apresentando-a como uma exigência íntima da Presença eucarística. Pôde assim dar início a um círculo virtuoso. Com as longas permanências na igreja junto do sacrário, fez com que os fiéis começassem a imitá-lo, indo até lá visitar Jesus, e ao mesmo tempo estivessem seguros de que lá encontrariam o seu pároco, disponível para os ouvir e perdoar. Em seguida, a multidão crescente dos penitentes, provenientes de toda a França, haveria de o reter no confessionário até 16 horas por dia. Dizia-se então que Ars se tinha tornado «o grande hospital das almas».[20] «A graça que ele obtinha [para a conversão dos pecadores] era tão forte que aquela ia procurá-los sem lhes deixar um momento de trégua!»: diz o primeiro biógrafo.[21] E assim o pensava o Santo Cura d’Ars, quando afirmava: «Não é o pecador que regressa a Deus para Lhe pedir perdão, mas é o próprio Deus que corre atrás do pecador e o faz voltar para Ele».[22] «Este bom Salvador é tão cheio de amor que nos procura por todo o lado».[23]

Todos nós, sacerdotes, deveríamos sentir que nos tocam pessoalmente estas palavras que ele colocava na boca de Cristo: «Encarregarei os meus ministros de anunciar aos pecadores que estou sempre pronto a recebê-los, que a minha misericórdia é infinita».[24] Do Santo Cura d’Ars, nós, sacerdotes, podemos aprender não só uma inexaurível confiança no sacramento da Penitência que nos instigue a colocá-lo no centro das nossas preocupações pastorais, mas também o método do «diálogo de salvação» que nele se deve realizar. O Cura d’Ars tinha maneiras diversas de comportar-se segundo os vários penitentes. Quem vinha ao seu confessionário atraído por uma íntima e humilde necessidade do perdão de Deus, encontrava nele o encorajamento para mergulhar na «torrente da misericórdia divina» que, no seu ímpeto, tudo arrasta e depura. E se aparecia alguém angustiado com o pensamento da sua debilidade e inconstância, temeroso por futuras quedas, o Cura d’Ars revelava-lhe o segredo de Deus com um discurso de comovente beleza: «O bom Deus sabe tudo. Ainda antes de vos confessardes, já sabe que voltareis a pecar e todavia perdoa-vos. Como é grande o amor do nosso Deus, que vai até ao ponto de esquecer voluntariamente o futuro, só para poder perdoar-nos!».[25] Diversamente, a quem se acusava de forma tíbia e quase indiferente, expunha, através das suas próprias lágrimas, a séria e dolorosa evidência de quão «abominável» fosse aquele comportamento. «Choro, porque vós não chorais»:[26] exclamava ele. «Se ao menos o Senhor não fosse assim tão bom! Mas é assim bom! Só um bárbaro poderia comportar-se assim diante de um Pai tão bom!».[27] Fazia brotar o arrependimento no coração dos tíbios, forçando-os a verem com os próprios olhos o sofrimento de Deus, causado pelos pecados, quase «encarnado» no rosto do padre que os atendia de confissão. Entretanto a quem se apresentava já desejoso e capaz de uma vida espiritual mais profunda, abria-lhe de par em par as profundidades do amor, explicando a inexprimível beleza de poder viver unidos a Deus e na sua presença: «Tudo sob o olhar de Deus, tudo com Deus, tudo para agradar a Deus. (...) Como é belo!»[28] E ensinava-lhes a rezar assim: «Meu Deus, dai-me a graça de Vos amar tanto quanto é possível que eu Vos ame!».[29]

No seu tempo, o Cura d’Ars soube transformar o coração e a vida de muitas pessoas, porque conseguiu fazer-lhes sentir o amor misericordioso do Senhor. Também hoje é urgente igual anúncio e testemunho da verdade do Amor: Deus caritas est (1 Jo 4, 8). Com a Palavra e os Sacramentos do seu Jesus, João Maria Vianney sabia instruir o seu povo, ainda que frequentemente suspirava convencido da sua pessoal inaptidão a ponto de ter desejado diversas vezes subtrair-se às responsabilidades do ministério paroquial de que se sentia indigno. Mas, com exemplar obediência, ficou sempre no seu lugar, porque o consumia a paixão apostólica pela salvação das almas. Procurava aderir totalmente à própria vocação e missão por meio de uma severa ascese: «Para nós, párocos, a grande desdita – deplorava o Santo – é entorpecer-se a alma»,[30] entendendo, com isso, o perigo de o pastor se habituar ao estado de pecado ou de indiferença em que vivem muitas das suas ovelhas. Com vigílias e jejuns, punha freio ao corpo, para evitar que opusesse resistência à sua alma sacerdotal. E não se esquivava a mortificar-se a si mesmo para bem das almas que lhe estavam confiadas e para contribuir para a expiação dos muitos pecados ouvidos em confissão. Explicava a um colega sacerdote: «Dir-vos-ei qual é a minha receita: dou aos pecadores uma penitência pequena e o resto faço-o eu no lugar deles».[31] Independentemente das penitências concretas a que se sujeitava o Cura d’Ars, continua válido para todos o núcleo do seu ensinamento: as almas custam o sangue de Cristo e o sacerdote não pode dedicar-se à sua salvação se se recusa a contribuir com a sua parte para o «alto preço» da redenção.

No mundo actual, não menos do que nos tempos difíceis do Cura d’Ars, é preciso que os presbíteros, na sua vida e acção, se distingam por um vigoroso testemunho evangélico. Observou, justamente, Paulo VI que «o homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres ou então, se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas».[32] Para que não se forme um vazio existencial em nós e fique comprometida a eficácia do nosso ministério, é preciso não cessar de nos interrogarmos: «Somos verdadeiramente permeados pela Palavra de Deus? É verdade que esta é o alimento de que vivemos, mais de que o sejam o pão e as coisas deste mundo? Conhecemo-la verdadeiramente? Amamo-la? De tal modo nos ocupamos interiormente desta palavra, que a mesma dá realmente um timbre à nossa vida e forma o nosso pensamento?».[33] Assim como Jesus chamou os Doze para estarem com Ele (cf.Mc 3, 14) e só depois é que os enviou a pregar, assim também nos nossos dias os sacerdotes são chamados a assimilar aquele «novo estilo de vida» que foi inaugurado pelo Senhor Jesus e assumido pelos Apóstolos.[34]

Foi precisamente a adesão sem reservas a este «novo estilo de vida» que caracterizou o trabalho ministerial do Cura d’Ars. O Papa João XXIII, na carta encíclica Sacerdotii nostri primordia – publicada em 1959, centenário da morte de S. João Maria Vianney –, apresentava a sua fisionomia ascética referindo-se de modo especial ao tema dos «três conselhos evangélicos», considerados necessários também para os presbíteros: «Embora, para alcançar esta santidade de vida, não seja imposta ao sacerdote como própria do estado clerical a prática dos conselhos evangélicos, entretanto esta representa para ele, como para todos os discípulos do Senhor, o caminho regular da santificação cristã».[35] O Cura d’Ars soube viver os «conselhos evangélicos» segundo modalidades apropriadas à sua condição de presbítero. Com efeito, a sua pobreza não foi a mesma de um religioso ou de um monge, mas a requerida a um padre: embora manejasse com muito dinheiro (dado que os peregrinos mais abonados não deixavam de se interessar pelas suas obras sócio-caritativas), sabia que tudo era dado para a sua igreja, os seus pobres, os seus órfãos, as meninas da sua «Providence»,[36] as suas famílias mais indigentes. Por isso, ele «era rico para dar aos outros e era muito pobre para si mesmo».[37] Explicava: «O meu segredo é simples: dar tudo e não guardar nada».[38] Quando se encontrava com as mãos vazias, dizia contente aos pobres que se lhe dirigiam: «Hoje sou pobre como vós, sou um dos vossos».[39] Deste modo pôde, ao fim da vida, afirmar com absoluta serenidade: «Não tenho mais nada. Agora o bom Deus pode chamar-me quando quiser!».[40] Também a sua castidade era aquela que se requeria a um padre para o seu ministério. Pode-se dizer que era a castidade conveniente a quem deve habitualmente tocar a Eucaristia e que habitualmente a fixa com todo o entusiasmo do coração e com o mesmo entusiasmo a dá aos seus fiéis. Dele se dizia que «a castidade brilhava no seu olhar», e os fiéis apercebiam-se disso quando ele se voltava para o sacrário fixando-o com os olhos de um enamorado.[41] Também a obediência de S. João Maria Vianney foi toda encarnada na dolorosa adesão às exigências diárias do seu ministério. É sabido como o atormentava o pensamento da sua própria inaptidão para o ministério paroquial e o desejo que tinha de fugir «para chorar a sua pobre vida, na solidão».[42] Somente a obediência e a paixão pelas almas conseguiam convencê-lo a continuar no seu lugar. A si próprio e aos seus fiéis explicava: «Não há duas maneiras boas de servir a Deus. Há apenas uma: servi-Lo como Ele quer ser servido».[43] A regra de ouro para levar uma vida obediente parecia-lhe ser esta: «Fazer só aquilo que pode ser oferecido ao bom Deus».[44]

No contexto da espiritualidade alimentada pela prática dos conselhos evangélicos, aproveito para dirigir aos sacerdotes, neste Ano a eles dedicado, um convite particular para saberem acolher a nova primavera que, em nossos dias, o Espírito está a suscitar na Igreja, através nomeadamente dos Movimentos Eclesiais e das novas Comunidades. «O Espírito é multiforme nos seus dons. (…) Ele sopra onde quer. E fá-lo de maneira inesperada, em lugares imprevistos e segundo formas precedentemente inimagináveis (…); mas demonstra-nos também que Ele age em vista do único Corpo e na unidade do único Corpo».[45] A propósito disto, vale a indicação do decretoPresbyterorum ordinis: «Sabendo discernir se os espíritos vêm de Deus, [os presbíteros] perscrutem com o sentido da fé, reconheçam com alegria e promovam com diligência os multiformes carismas dos leigos, tanto os mais modestos como os mais altos».[46] Estes dons, que impelem não poucos para uma vida espiritual mais elevada, podem ser de proveito não só para os fiéis leigos mas também para os próprios ministros. Com efeito, da comunhão entre ministros ordenados e carismas pode brotar «um válido impulso para um renovado compromisso da Igreja no anúncio e no testemunho do Evangelho da esperança e da caridade em todos os recantos do mundo».[47] Queria ainda acrescentar, apoiado na exortação apostólica Pastores dabo vobis doPapa João Paulo II, que o ministério ordenado tem uma radical «forma comunitária» e pode ser cumprido apenas na comunhão dos presbíteros com o seu Bispo.[48] É preciso que esta comunhão entre os sacerdotes e com o respectivo Bispo, baseada no sacramento da Ordem e manifestada na concelebração eucarística, se traduza nas diversas formas concretas de uma fraternidade sacerdotal efectiva e afectiva.[49] Só deste modo é que os sacerdotes poderão viver em plenitude o dom do celibato e serão capazes de fazer florir comunidades cristãs onde se renovem os prodígios da primeira pregação do Evangelho.

O Ano Paulino, que está a chegar ao fim, encaminha o nosso pensamento também para o Apóstolo das nações, em quem refulge aos nossos olhos um modelo esplêndido de sacerdote, totalmente «doado» ao seu ministério. «O amor de Cristo nos impele – escrevia ele –, ao pensarmos que um só morreu por todos e que todos, portanto, morreram» (2 Cor 5, 14). E acrescenta: Ele «morreu por todos, para que os vivos deixem de viver para si próprios, mas vivam para Aquele que morreu e ressuscitou por eles» (2 Cor 5, 15). Que programa melhor do que este poderia ser proposto a um sacerdote empenhado a avançar pela estrada da perfeição cristã?

Amados sacerdotes, a celebração dos cento e cinquenta anos da morte de S. João Maria Vianney (1859) segue-se imediatamente às celebrações há pouco encerradas dos cento e cinquenta anos das aparições de Lourdes (1858). Já em 1959, o Beato Papa João XXIII anotara: «Pouco antes que o Cura d’Ars concluísse a sua longa carreira cheia de méritos, a Virgem Imaculada aparecera, noutra região da França, a uma menina humilde e pura para lhe transmitir uma mensagem de oração e penitência, cuja imensa ressonância espiritual há um século que é bem conhecida. Na realidade, a vida do santo sacerdote, cuja comemoração celebramos, fora de antemão uma viva ilustração das grandes verdades sobrenaturais ensinadas à vidente de Massabielle. Ele próprio nutria pela Imaculada Conceição da Santíssima Virgem uma vivíssima devoção, ele que, em 1836, tinha consagrado a sua paróquia a Maria concebida sem pecado e havia de acolher com tanta fé e alegria a definição dogmática de 1854».[50] O Santo Cura d’Ars sempre recordava aos seus fiéis que «Jesus Cristo, depois de nos ter dado tudo aquilo que nos podia dar, quis ainda fazer-nos herdeiros de quanto Ele tem de mais precioso, ou seja, da sua Santa Mãe».[51]

À Virgem Santíssima entrego este Ano Sacerdotal, pedindo-Lhe para suscitar no ânimo de cada presbítero um generoso relançamento daqueles ideais de total doação a Cristo e à Igreja que inspiraram o pensamento e a acção do Santo Cura d’Ars. Com a sua fervorosa vida de oração e o seu amor apaixonado a Jesus crucificado, João Maria Vianney alimentou a sua quotidiana doação sem reservas a Deus e à Igreja. Possa o seu exemplo suscitar nos sacerdotes aquele testemunho de unidade com o Bispo, entre eles próprios e com os leigos que é tão necessário hoje, como o foi sempre. Não obstante o mal que existe no mundo, ressoa sempre actual a palavra de Cristo aos seus apóstolos, no Cenáculo: «No mundo sofrereis tribulações. Mas tende confiança: Eu venci o mundo» (Jo 16, 33). A fé no divino Mestre dá-nos a força para olhar confiadamente o futuro. Amados sacerdotes, Cristo conta convosco. A exemplo do Santo Cura d’Ars, deixai-vos conquistar por Ele e sereis também vós, no mundo actual, mensageiros de esperança, de reconciliação, de paz.

Com a minha bênção.

Vaticano, 16 de Junho de 2009.

BENEDICTUS PP. XVI




[1] Assim o proclamou o Sumo Pontífice Pio XI, em 1929.
[2] «Le Sacerdoce, c’est l’amour du cœr de Jésus», in Le Curé d’Ars. Sa pensée – son cœur, obra cuidada por Abbé Bernard Nodet (ed. Xavier Mappus, Foi Vivante, 1966), pág. 98. Em seguida, será citada: Nodet. A mesma frase aparece no Catecismo da Igreja Católica, n. 1589.
[3] Nodet, 101.
[4] Ibid., 97.
[5] Ibid., 98-99.
[6] Ibid., 98-100.
[7] Ibid., 183.
[8] MONNIN A., Il Curato d’Ars. Vita di Gian-Battista-Maria Vianney, vol. I (ed. Marietti, Turim 1870), pág. 122.
[12] «A contemplação é o olhar de fé, fixado em Jesus. “Eu olho para Ele e Ele olha para mim” – dizia, no tempo do seu santo Cura, um camponês d’Ars em oração diante do sacrário»(Catecismo da Igreja Católica, n. 2715).
[13] Nodet, 85.
[14] Ibid., 114.
[15] Ibid., 119.
[16] MONNIN A., o.c., II, pág. 430ss.
[17] Nodet, 105.
[18] Ibid., 105.
[19] Ibid., 104.
[20] MONNIN A., o.c., II, pág. 293.
[21] Ibid., II, pág. 10.
[22] Nodet, 128.
[23] Ibid., 50.
[24] Ibid., 131.
[25] Ibid., 130.
[26] Ibid., 27.
[27] Ibid., 139.
[28] Ibid., 28.
[29] Ibid., 77.
[30] Ibid., 102.
[31] Ibid., 189.
[33] BENTO XVI, Homilia na Missa Crismal (9 de Abril de 2009).
[35] Parte I.
[36] Este foi o nome que deu à casa onde fez alojar e educar mais de 60 meninas abandonadas. Para mantê-la, a nada se poupava: «J’ai fait tous les commerces imaginables» - dizia ele sorrindo (Nodet, 214).
[37] Nodet, 216.
[38] Ibid., 215.
[39] Ibid., 216.
[40] Ibid., 214.
[41] Cf. ibid., 112.
[42] Cf. ibid., 82-84.102-103.
[43] Ibid., 75.
[44] Ibid., 76.
[45] BENTO XVI, Homilia na Vigília de Pentecostes (3 de Junho de 2006).
[46] N. 9.
[48] Cf. n. 17.
[49] Cf. JOÃO PAULO II, Exort. ap. Pastores dabo vobis , 74.
[50] Carta enc. Sacerdotii nostri primordia, parte III.
[51] Nodet, 244.

[Comentários Apologéticos] A existência de Deus

1º Domingo do Advento (Segundo a forma extraordinária do Rito Romano)


Evangelho: Lc 21 25-33


“Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: 25. Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas. Na terra a aflição e a angústia apoderar-se-ão das nações pelo bramido do mar e das ondas. 26. Os homens definharão de medo, na expectativa dos males que devem sobrevir a toda a terra. As próprias forças dos céus serão abaladas. 27. Então verão o Filho do Homem vir sobre uma nuvem com grande glória e majestade. 28. Quando começarem a acontecer estas coisas, reanimai-vos e levantai as vossas cabeças; porque se aproxima a vossa libertação. 29. Acrescentou ainda esta comparação: Olhai para a figueira e para as demais árvores. 30. Quando elas lançam os brotos, vós julgais que está perto o verão. 31. Assim também, quando virdes que vão sucedendo estas coisas, sabereis que está perto o Reino de Deus. 32. Em verdade vos declaro: não passará esta geração sem que tudo isto se cumpra. 33. Passarão o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão.”

Comentário apologético

O Evangelho de hoje, início do ano eclesiástico, nos coloca, de relance, diante da cena terrificante do fim do mundo e do julgamento universal.

Olhe e levante as vossas cabeças, diz o Salvador, ...passará o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão.

Eis, pois, no meio dos seres, coisas que passam e um ser que não passa, mas que é eterno, o princípio de tudo.

O que passa é este mundo, o que não passa é Deus.

E há gente que ousa afirmar, de boca e pela sua vida que Deus não existe. O Espírito Santo nos avisa que tais idéias vem da boca e não da inteligência: “O insensato diz em seu coração: não há Deus!” (Sl 13)

Seria triste ser obrigado a convencer um filho de que teve pai; mais triste é ver um homem negar que é filho de Deus.

Em frente da cena tremenda do fim do mundo e do Salvador vindo sobre uma nuvem com grande poder e majestade, demonstramos claramente:

1.º Que Deus existe verdadeiramente
2.º Que Deus é um Ser pessoal.

Refutaremos, deste modo, as teorias dos ateístas que negam Deus, e a dos panteístas que afirmam que Deus é universo.

I – Deus Existe

Chamamos Deus o Ser supremo, a causa primeira de tudo o que existe; Aquele que existe por si mesmo, de quem tudo depende e que não depende de ninguém.

Os que negam a existência de Deus chamam-se: ateus.
Há bastante ateus de vida, vivendo como se não houvera Deus, porém, não há ateus de convicção, porque toda convicção exige motivos de convicção, e estes não podem ser encontrados.

Entre as numerosas provas da existência de Deus, limitemo-nos às três seguintes:

a) A fé do gênero humano.

Todos os povos, de todos os tempos, acreditaram na existência de um Ser Supremo, ou Deus. É a convicção fundamental do gênero humano.

É tão natural ao homem crer em Deus, quão natural é as crianças crerem em seus pais.

A crença em Deus não vem da ciência, nem dos homens, vem da natureza e da razão, como uma expressão de uma verdade inelutável.

b) A ordem e a beleza do universo.

Examinando o mundo, encontramos nele uma ordem admirável em sua organização e funcionamento. Tudo se sucede no tempo marcado, sem vacilação, sem alteração. O mundo é um verdadeiro relógio. Ora, disse Voltaire:

“Quanto mais nisto cogito,
Mais longe estou de pensar,
Que sem relojoeiro,
Possa este relógio andar.”


Na união e na variedade das suas partes o mundo constitui uma obra prima, inimitável, de poesia, de pintura, de audácia e de harmonia.

Se a existência de um relógio prova a existência de um relojoeiro, se a beleza de um quadro prova a existência de um artista, um quadro inimitável indica necessariamente um Artista supremo.

c) A existência do Gênero humano

Ninguém pode criar a si mesmo, porque se pudesse criar, esse ser criado já não seria o que criou, visto este último já existir.

Ora, o homem existe.
Logo teve um criador.

Cada um de nós é obrigado a confessar que recebeu a vida de outrem, e este outro de mais outro, até chegar a existência do primeiro, que a recebeu de Deus.

O primeiro deu a vida, mas não a recebeu de ninguém: é único. É Deus. Logo, Deus existe.

Ninguém dá o que não possui. Deus dá a vida. Logo, ele a possui.

II – Deus é um ser pessoal

Deus é uma personalidade. Não somente ele existe, mas existe completamente distinto da obra que ele criou, como o artista é distinto da produção de suas mãos.

A categoria dos insensatos que admitem a existência de Deus, mas que dizem não ter personalidade distinta das coisas criadas, chama-se a dos panteístas.

O ateísmo e o panteísmo são os dois extremos afastados da verdade: os primeiros não admitem a existência de Deus; os segundos pretendem loucamente que tudo seja Deus, de modo que na opinião deles há identidade substancial entre Deus e o mundo. É como se alguém dissesse que o pedreiro e a casa que ele constrói são uma só e mesma coisa.

O homem sente a necessidade de Deus, a impiedade não podendo arrancar este sentimento inato, fabrica u deus que tem este nome, mas não tem o poder que tal título supõe.

Deus não é mais alguém, é uma coisa.
Deus não é mais uma pessoa que governa, é o universo que se governa por si.
Tal Deus não incomoda mais ninguém, porque não é ninguém.

O panteísmo, para sustentar tal hipótese, é obrigado a afirmar que a mesma substância (o universo) é ao mesmo tempo finito e infinito, mutável e imutável, passageiro e eterno, ou simplesmente: preto e branco, pequeno e grande, pois reúnem num termo único dois elementos radicalmente opostos.

As conseqüências de tal hipótese são imorais, pois se tudo é Deus, Deus é composto do que há nesse mundo: erro e verdade, crime e virtude, ignorância e ciência.

De duas uma: é preciso negar a existência de Deus – o que é impossível – ou admitir um Deus - ignorante, mentiroso, vicioso.

Em outros termos: é preciso negar a evidência ou afirmar o absurdo: pois divinizar tudo é tudo justificar.

III – Conclusão

Como acabamos de ver, o ateísmo e o panteísmo: nenhum Deus, ou: tudo Deus, são dois irmão gêmeos, duas formas de incredulidade, do vício.

Deus existe: para prová-lo basta seguir o conselho do Divino Mestre: Levantai as vossas cabeças e examinai o mundo. Em cada uma das suas peças constitutivas está escrito, em letras flamejantes, o nome do Criador, do Ser Supremo.

Ora, o ser supremo é necessariamente único; sendo único é também necessariamente um ser pessoal, uma personalidade distinta de tudo o que existe neste e no outro mundo.

Tão pessoal é ele que o Evangelho no-lo apresenta como vindo numa nuvem com grande poder e majestade, para, no fim dos tempos, julgar o universo.

Exemplos:

1. Uma resposta de Newton

Uma noite, Newton passeava com um de seus amigos, indiferente em questões religiosas. No meio da conversa, este disse ao sábio que lhe desse uma prova da existência de Deus, curta e sem réplica.

Newton estendeu a mão para o firmamento e respondeu simplesmente:

- Olhe!...

2. Resposta de um menino

Um sapateiro disse um dia ao seu aprendiz, menino muito religioso:

- Olhe, pequeno, este negócio de crer em Deus é beatice... Deus não existe, o mundo se fez por si.

O menino respondeu com calma:

- Mas, neste caso, é mais fácil fazer um mundo do que fazer um sapato.

3. Diálogo no trem

- O mundo funciona sozinho: não há precisão de Deus para explicar o seu movimento.

- Olhe, a porta do carro se fecha também sozinha, basta uma mola. Não há pois precisão de operário para explicar esse movimento.

- Ao contrário, e o senhor sabe tão bem quanto eu: uma porta que se fecha automaticamente por si mesma supõe mais inteligência por parte do artista que a fez, do que uma porta comum.