São Josemaría Escrivá, Pe. Júlio Maria De Lombaerde e o Concílio
Por Matheus R. Garbazza
O santo nunca foi aquele desligado de seu mundo e de
seu tempo. Configurados à pessoa de Cristo, cabeça da Igreja, todos os homens e
mulheres que viveram virtuosamente a sua vida terrena foram profundamente
inseridos no ambiente em que viviam, justamente com a finalidade de incitar em
seus contemporâneos o mesmo ardor com que serviam eles mesmos aos seu Criador.
Mesmo os santos eremitas e as santas enclausuradas deram a seu modo um testemunho
profundo de vida e de virtude.
Se observamos a própria vida do Redentor, somos
levados invariavelmente à mesma conclusão. Inúmeras são as páginas do Santo
Evangelho que nos mostram Jesus caminhando com o povo, comendo, rezando e
conversando com as pessoas. De tal forma que o nome “Deus Conosco” (Emanuel)
não é apenas um devaneio poético, mas uma realidade palpável que se pode
experimentar ainda hoje, para além do tempo e do espaço restritos em que Jesus
viveu, pela ação sacramental da Igreja.
Da pregação e da ação de Jesus e de seus seguidores,
desde os tempos apostólicos até os nossos dias, duas coisas chamam a atenção: a
vocação universal à santidade e a santidade da vida cotidiana. Se às vezes
fazemos da vida dos santos uma imagem idealizada e inalcançável, basta relermos
os Evangelhos para verificar de perto quem é o santo: uma pessoa como eu e
você, mas que toma a peito as consequências de sua opção fundamental por Deus e
pelo seu Reino.
Talvez mais do que em qualquer outra época, nosso
século é dotado, ao mesmo tempo, de duas características paradoxais que colocam
o bom católico em cheque: de um lado, observamos um desprezo pela religião e
suas formas externas, com um crescente número de pessoas que se declaram “atéias”
ou outras coisas semelhantes. Por outro lado, existem aqueles que fazem sua
própria fé: tomam elementos de uma ou outra crença, e os misturam numa espécie
de “supermercado sagrado”.
Essas formas nada novas de crítica à fé e à Igreja são
ainda marcadas por movimentos paralelos, que pretendem ter a força de uma opção
incondicional do sujeito, e que apregoam valores semelhantes aos da fé. Em nome
da justiça, da igualdade e da tolerância, rejeitam Deus de seu horizonte e
colocam-se a si mesmos como o centro da vida e da sociedade.
Perceber bem qual é a figura do santo é essencial para
manifestar a solução da fé para a encruzilhada da modernidade. Vivemos num
tempo que precisa de santos, como lembraram e insistiram todos os últimos
Pontífices. Entre tantos caminhos e desvios, é a estrada da fé, a estrada
estreita, que pode oferecer ao homem e à mulher do nosso tempo um sentido e uma
saída para os seus dilemas.
A VOCAÇÃO
UNIVERSAL À SANTIDADE
Em toda a sua vida pública, mas essencialmente em seus
últimos momentos, Jesus deu-se como exemplo para aqueles que o seguiam. Não
colocou sobre ninguém um fardo que ele mesmo não tivesse pessoalmente
carregado. O poeta colocou as palavras do Redentor naquela canção que todos
conhecemos muito bem: “se vos perseguem por causa de mim/ não esqueçais o
porquê/ não é o servo maior que o Senhor”. Se nós enfrentamos cotidianamente as
limitações de nossa própria existência, Jesus o fez também. E sofreu muito mais
que nós, posto que seu rebaixamento supera o nosso, quando se faz homem conosco.
Jesus mesmo aponta o que deve ser a meta de nossa
vida: “Sede perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celeste” (Mt 5,48). Ele não
nos pede nada impossível ou meramente metafórico, como um impulso para que
fôssemos bons. Pelo contrário, dá-nos como exemplo a vida de amor-caridade que
é a vida da Trindade. Se Deus é amor, ao permanecermos no amor somos no mundo
sinais verdadeiros da presença de Deus – porque estamos nele (Cf. 1Jo 4,16).
O que é a santidade? É essa imitação da vida de Jesus.
São Paulo orientava as comunidades para que fossem imitadoras dele, não porque
fosse melhor, mas porque ele mesmo era imitador de Cristo. A santidade é o
ponto de chegada da vida de qualquer cristão. É a vida divina, a salvação
eterna, a felicidade sem fim junto de Deus.
Fomos criados para a vida, e não para a morte. É
portanto desejo de Deus que todos nós alcancemos a Vida junto d’Ele. Nenhum de
nós está predestinado à morte ou à perdição. Como, portanto, dizer que a
santidade é destinada a um grupo privilegiado ou preferido? Pelo contrário, é o
alvo de todos nós, com nossas limitações e defeitos, mas com nossa vontade e a
Graça de Deus.
Essa definição de santidade como imitação de Cristo é
sintetizada bem por um santo muito atual: São Josemaría Escriva, espanhol
fundador do Opus Dei: “O grande
segredo da santidade reduz-se a parecer-se cada vez mais com Ele, que é o único
e amável Modelo.” (Forja, 752). Todos
somos, portanto, vocacionados (quer dizer, chamados, convocados) para sermos
imitadores de Cristo.
A Igreja define esse chamado com um termo específico: “vocação
universal à santidade”. O Concílio Vaticano II dá-nos uma direção clara sobre o
tema:
“É, pois, bem claro que todos os fiéis, seja qual for
o seu estado ou classe, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição
da caridade: por esta santidade se promove, também na sociedade terrena,
um teor devida mais humano. Empreguem os fiéis as forças recebidas segundo a medida
da dádiva de Cristo, para alcançar esta perfeição, a fim de que, seguindo os
seus exemplos, tornando-se conformes à sua imagem e obedecendo em tudo a
vontade do Pai, se dediquem à glória de Deus e ao serviço do próximo. Assim a
santidade do povo de Deus, crescerá oferecendo abundantes frutos, como o
demonstra brilhantemente, através da história da Igreja, a vida de tantos
santos” (Const. Lumen Gentium, 40).
Daqui percebemos que, sendo todos destinados à vida
eterna, precisamos nos esforçar para consegui-la. A ação pastoral da Igreja é o
esforço para que todos estejam no bom caminho em direção à salvação. É para
conduzir e ajudar os fiéis por esse caminho que tantos missionários deram suas
vidas e seus esforços – fazendo a renúncia total de si.
A agudeza da percepção pastoral do Pe. Júlio Maria De
Lombaerde, sacerdote missionário falecido em Minas Gerais no ano de 1944, o fez
notar uma dificuldade na alma de seus paroquianos e de outros tantos com quem
convivia: parece que a santidade não é para todos! Parece que é apenas para uma
classe escolhida... Ele mesmo escreve: “Que pesar! Mas se refletíssemos
bastante, é como se disséssemos: a perfeição não é para mim... é por demais
alta... é para os santos!” (Contemplação Sobrenatural, p. 9).
Como zeloso guia de seu rebanho, assíduo à leitura da
Escritura e sentindo com toda a Igreja, o missionário não hesita em relembrar: “Mas
não! A perfeição não é para os santos, mas para aqueles que o querem ser. Os
santos a possuem já, nós é que não a temos!” (Op. Cit., p. 10). E então passará
a apontar o caminho da santidade. (Não posso deixar de relembrar aqui a pintura
que está no teto da igreja em que Pe. Júlio Maria foi sepultado, e que retrata
esse santo missionário apontando para o céu, como a convocar todas as almas
para que se santificassem e pudessem chegar à presença eterna diante de Deus).
E resume (na década de 30!) o pensamento perene da
Igreja, que depois iria ser retomado pelo Concílio Vaticano II: “Todos nós
somos chamados à santidade” (Op. Cit., p. 6).
A SANTIDADE
DA VIDA COTIDIANA
Que todos recebem de Deus o chamado para serem santos
é, portanto, um ponto que todos podemos aceitar bem, conforme se verifica pela
Sagrada Escritura, pelo Magistério da Igreja e pela palavra dos que nos
precederam na fé. Mas, então, como chegar à santidade? Como alcançar a meta tão
esperada? Seria necessário descolar-nos da história? Precisamos nos retirar
para locais isolados ou fechados? É preciso abraçar um estado de vida
específico?
Nenhum engano seria maior do que esse. São Paulo já
dizia que há uma multiplicidade admirável de dons na Igreja, e que todos eles
nos orientam à santidade e à promoção do bem. Cada um deve utilizar os dons que
recebeu para se santificar e ajudar os demais na sua própria santificação,
porque o discípulo de Jesus (que o segue e quer imitá-lo) precisa deixar
transbordar a presença de Jesus e deve tornar-se também propagador daquilo que
recebeu.
Não é à toa que São Josemaría Escrivá recebeu o
epíteto de “Santo da Vida Cotidiana”: soube, com muita propriedade, relembrar
que a santidade não depende primariamente de um estado de vida determinado, ou
de práticas uniformes a todos, mas sim da fidelidade àquilo que nos foi
confiado.
Pensemos numa pessoa, qualquer que seja. O trabalhador
do escritório, a mãe de família, a médica, a professora, o policial, a
advogada, o estudante, o padre, e tantos outros. A santidade de cada um deles
passa pela boa prática de suas ocupações. E também dos estados de vida:
religiosos, solteiros, pais de família, leigos consagrados... E não pensemos
que isso seja muito fácil! Para sermos bons, é necessário esforço e exercício.
A todo tempo somos desviados de nossa meta e impelidos a fazer o que não
devemos. A Isso a tradição da Igreja chama de “tentação”. O santo é um herói! “A
santidade compõe-se de heroísmos. Por isso, no trabalho pede-se-nos o heroísmo
de rematar bem as tarefas que nos cabem, dia após dia, embora se repitam as
mesmas ocupações. Se não, não queremos ser santos!”, dizia São Josemaría (Sulco,
529).
Como dizíamos no início, a imitação de Cristo não se
dá apenas em um ou outro momento em que sentimos vontade de o fazer. Mas é
fruto da nossa opção fundamental pelo Bem e por Deus. A fé, que nos move a
sermos bons, é aquilo que toca no mais íntimo de nós. Constantemente aparecem
coisas (o dinheiro, o poder, a vingança, a fama, e tantas outras) que querem se
colocar no lugar que Deus ocupa em nós. Faz parte da nossa luta diária não
deixar que Deus seja deslocado do centro de nossa vida e de nossas opções.
Os padres conciliares também apresentam luminosamente
esse princípio:
“Uma mesma santidade é cultivada por todos aqueles
que, nos vários gêneros de vida e nas diferentes profissões, são guiados pelo
Espírito de Deus e, obedecendo à voz do Pai e adorando-o em espírito e verdade,
seguem a Cristo pobre, humilde e carregado com a cruz, para merecerem participar
da sua glória. Cada um, segundo os dons e as funções que lhe foram confiados,
deve enveredar sem hesitação pelo caminho da fé viva, que excita a esperança e
opera pela caridade.” (Const. Lumen
Gentium, 41).
Essa possibilidade de se santificar seja qual for o
seu estado de vida já está também presente, ainda que modo latente, no pensamento
espiritual do Pe. Júlio Maria. Ele assegura que, embora a vida religiosa seja
um meio de atingir a perfeição, isso não significa que basta abraça-la para
atingir a santidade. Pelo contrário, é necessário buscar constantemente a
purificação e a misericórdia de Deus para corresponder ao dom a eles confiado.
“Ora, a vida religiosa é um estado de santidade. Não é
isso a perfeição. A perfeição está na alma; o estado de perfeição é exterior.
Pode-se estar nesse estado sem ter a perfeição e mesmo sem ter o estado de
graça; mas o estado religioso é um meio de adquirir a perfeição e um
compromisso de ser perfeito ou de tender a sê-lo” (Contemplação Sobrenatural,
p. 35).
Até mesmo para os seus padres, seus queridos
missionários, ele repetia: “Estaremos prontos a ir aonde a obediência nos
mandar para aí ganharmos almas e nos mostrarmos verdadeiros apóstolos da
Eucaristia” (Suspiros, 35). Ou seja, não importa qual nosso lugar de missão:
seja onde for, devemos ser ali discípulos-missionários de Jesus Cristo,
impregnando todos os que nos circundam com o amor de Deus.
Damos o resumo dessa parte a São Josemaría: “A
santidade ‘grande’ consiste em cumprir os ‘pequenos deveres’ de cada instante.”
(Caminho, 817).
CONTRA O
VÍCIO, APRESENTAR A VIRTUDE
Nosso tempo, como dizíamos, precisa de santos para
mostrar a saída para o momento difícil em que vive a humanidade. O Papa Bento
XVI oferece uma síntese sobre o turvamento espiritual de nosso tempo. Segundo
ele, verificamos na realidade que nos cerca “a aridez, a pobreza das palavras
de vida e de valores, o secularismo e a cultura materialista, que fecham a
pessoa no horizonte mundano do existir diminuindo toda referência à transcendência.
É este também o ambiente no qual o céu que está sobre nós é obscuro, porque
está coberto pelas nuvens do egoísmo, da incompreensão e do engano.” (Catequese
22/02/2012).
Assim como Jesus foi sinal de contradição no seu
tempo, o católico precisa ser também. Não abstendo-se da vida em sociedade (característica
marcante da humanidade), mas opondo-se ao que há de errado nela. Mesmo aqueles
que são chamados à vida contemplativa (como os eremitas e monges) dão um
testemunho forte para a sociedade atual, que preza a riqueza e as aparências.
Por mais que vivam retirados, estão mais presentes que nunca.
Pe. Júlio Maria pedia à Nossa Senhora que pudéssemos
ser esse sinal presente de Deus no mundo em que vivemos: “Mandai-nos e
guiai-nos; queremos penetrar no meio da sociedade indiferente e viciada para
opor à sua negligência, amor e sacrifício” (Suspiros, 19).
Há uma última coisa a ser lembrada. Podemos, com
nossas forças, nos opor a muitos males da sociedade atual. Mas não devemos nos
esquecer de que a finalidade de nossas ações deve ser sempre o bem maior, e
esse bem não termina em nós; ele nos supera, dirige-se para toda a comunidade
humana e termina sempre em Deus. Não podemos excluir a referência cristã de
nossa ações. Senão seremos apenas mais um na multidão.
Como encontrar forças para essa luta cotidiana? Como
não nos perdermos? Como saber se estamos percorrendo o caminho certo?
Não podemos dar outro exemplo senão aquele que desde o
início tem sido nosso referencial: o Divino Redentor. Ele nos ensina e nos dá o
exemplo. “Quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em
segredo; e teu Pai, que vê num lugar oculto, recompensar-te-á” (Mt 6,6). Em
todos os momentos de sua vida pública, quando precisava tomar uma decisão
importante, ensinar algo aos seus amigos ou simplesmente “restaurar as forças”,
Jesus subia ao monte e rezava.
A oração constitui, portanto, o método mais eficaz
para firmar-nos na vida da virtude. Estudar e meditar são coisas ótimas, mas
valem-nos pouco sem a oração. Aliás, podemos tender à soberba e à vaidade se
não procuramos rezar como Jesus rezava. “As dificuldades em praticar a virtude
provém menos da falta de conhecimento do que da falta de fé, de esperança e de
amor”, dizia o Pe. Júlio Maria (Contemplação Sobrenatural, p. 89).
Rezemos, pois! E não nos esqueçamos que à imitação de
Jesus devemos manifestar a presença de Deus onde quer que estejamos. Isso nos
custa, sem dúvida. É uma cruz pesada, e devemos nos trabalhar um pouco a cada
dia para sermos melhores e conseguirmos o que queremos. Mas, rezando, a Graça
de Deus nunca nos haverá de faltar. “A oração é a arma mais poderosa do cristão.
A oração nos torna eficazes. A oração nos torna felizes. A oração nos dá toda a
força necessária para cumprirmos os preceitos de Deus.” (S. Josemaría, Forja,
439).
Belo Horizonte, 26 de junho de 2013, memória litúrgica
de São Josemaría Escrivá de Balaguer.
Em honra da Mãe de Deus,
de quem foram devotos Pe.
Júlio e S. Josemaría.
Parabéns, Matheus!
ResponderExcluirTexto maravilhoso!
Pelo pouco que conheço da vida do São Josemaría Escrivá e do Pe. Júlio Maria De Lombaerde, deu para "lê-los" em cada linha do seu texto.
Quisera nós termos sabedoria, humildade e perseverança para trilhar os mesmos caminhos!
Abraço.