CAPÍTULO VII
ESCRAVOS DE MARIA
Entramos no terceiro modo de dependência
da Santíssima Virgem. Não satisfeitos com laços ordinários que nos unem a Ela
como criaturas e como cristãos, almejamos confirmar este estado de dependência,
dando-nos, como o amor se dá: sem reservas nem restrições.
O primeiro grau na Consagração
voluntária à Santíssima Virgem e que serve de fundamento aos outros graus é
conforme a palavra do Evangelho: “Quem se
humilhar será exaltado”. Devemos humilhar-nos perante a Virgem Santíssima,
para que Ela nos eleve até Jesus. Em outros termos: devemos proclamar-nos seus
escravos, para que Ela nos eleve como filhos. Nada de mais ínfimo, nem de mais
humilde que o escravo.
I.
O que é a escravidão
Que é, em verdade, a escravidão de amor?
A escravidão é a dependência total e
absoluta para com um senhor, de modo que o escravo não se pertença mais, mas
fique sob o poder de seu dono, para que este se sirva dele à vontade e em
proveito próprio.
“O
escravo – diz Monsenhor Pio – pertence
completamente e para sempre a seu dono, com tudo o que possui, sem exceção
nenhuma. Trabalha sem exigir nenhum salário, sem que o Senhor tenha sobre ele
direito de vida e morte (a lei natural como também a mosaica e as leis modernas
não reconhecem tal poder a não ser por um mandato especial de Deus, que é o
Senhor da vida). Montfort se põe aqui simplesmente do ponto de vista do fato,
conforme as leis civis dos países onde vigorava em seu tempo a escravidão. Seu
intento, abstraída a moralidade do ato, é dar um exemplo de dependência total (nota
da 4.ª edição). O servo, ao contrário, é livre; presta seus serviços por um
salário durante um tempo determinado, reservando sempre para si o direito de
mudar”.
Basta esta simples definição para
convencermo-nos que somos não simplesmente servos de Jesus Cristo e de Maria
Santíssima, mas verdadeiramente escravos. E notai que não é uma fórmula nova,
suspeita ou inspirada por uma devoção repleta de entusiasmo sentimental... É o
pensamento fundamental da religião; ideia do Santo Batismo, que é o que há de
mais radical em nós, como cristãos, (cf. Lhomeau, op. cit.). Montfort salienta três espécies de escravidão, ou, ao menos, três títulos que motivam esta
dependência de Deus:
O
primeiro
– diz ele – é a escravidão por natureza;
todas as criaturas são escravas de Deus neste sentido.
O
segundo é a escravidão por constrangimento, em que alguém é reduzido à
servidão, seja por violência, seja por uma lei justa ou injusta. Tal a
escravidão dos demônios e dos réprobos.
O
terceiro,
enfim, é a escravidão por amor, ou
por livre vontade. Esta é a mais gloriosa para Deus, que vê o coração e que se
chama o Deus do coração ou da vontade amorosa.
Em resumo, e como aplicação destas três
espécies de escravidão: todas as criaturas são escravas de Deus pelo primeiro
modo; os demônios e réprobos, pela segunda; os justos e santos, pela terceira.
II.
Significação do termo
Praticamente esta devoção da Santa
Escravidão não é outra coisa, senão a ratificação, por livre escolha, do que já
somos por natureza, isto é que constitui a glória e a felicidade dos justos e
santos.
O sentido atual da palavra servo é
recente; antigamente só se conhecia o senhor e o escravo. É neste sentido que
se devem tomar as palavras latinas: servus
– ancilla, empregadas outrora.
Quando os profetas designam o Messias
como Servo de Deus (“Servus Dei”);
quando São Paulo nos ensina que Jesus Cristo tomou a aparência do servo (“formam servi accipiens”); quando a
Virgem Santíssima se intitula: “a serva do Senhor” (“ancilla Domini”); quando o grande Apóstolo dá a si mesmo o nome
de servo de Cristo, etc., todos empregam esta palavra no sentido de escravo.
“Sou
a escrava de Cristo – dizia Santa Ágata – e por este título me declaro de condição servil”.
“Para
ser devoto escravo do Filho – escreveu Santo Ildelfonso – suspiro por tornar-me fiel escravo da Mãe”.
E São Bernardo: “Sou um vil escravo, para quem é honra demais servir, como tal, o Filho
de Maria”.
Assim fala grande número de santos e de
piedosos, sábios, como São Pedro Damião, Santa Teresa, São João Eudes, Venerável
Olier, Padre de Condren, etc. A tão estimada oração de Santo Inácio: “Recebei, Senhor, minha liberdade”, bem
como a do Pe. Zucchi: “Ó minha soberana...”,
não são mais que fórmulas expressas da Santa Escravidão.
Os soberanos Pontífices sancionaram
estas fórmulas. Urbano VIII, em 1636, aprovava os Cônegos do Espírito Santo,
que se consagravam na qualidade de escravos a Jesus e Maria.
Leão XIII, em 1887 aprovou igualmente os
“Escravos do Sagrado Coração”, e enriqueceu de indulgências uma congregação
inspirada por Jesus Cristo a Santa Margarida Maria, que termina dizendo: “Quero fazer consistir toda a minha felicidade
em viver e morrer como sua escrava”.
III.
Escravo e amigo
A escravidão não está em oposição com o
espírito de infância e de amor que anima o Cristianismo. Jesus disse: “Não vos
chamarei mais servos, porém amigos”.
Isto, porém, nada prova contra esta
devoção.
Quando um príncipe, pela amizade que tem
a um de seus escravos, cumula-o de benefícios e o chama seu amigo, deixando-o
no estado onde se acha, não deixa aquele de ser escravo, apesar do título de
amigo do príncipe. Seu dono pode libertá-lo, sem dúvida.
Servindo-nos da comparação, somos como
escravos diante de Deus. Deus, entretanto, não pode libertar-nos, pois que nossa
escravidão está essencialmente ligada à nossa condição de criatura. Como o
escravo feito amigo de seu príncipe, podemos tornar-nos “Amigos de Deus”, sem
cessar de sermos escravos (cf. Franzelin: De
Verbo Incarnato – Thes. 38. teol. 2).
As odiosas e abomináveis lembranças do
paganismo desacreditaram a palavra escravidão; mas não queremos dizer que,
preconizando a ideia de nossa servidão para com Deus, não repudiamos a tirania
de muitos donos e a degradação dos escravos. Estas foram circunstâncias acidentais,
que de nenhum modo entraram na essência desta condição.
Coraríamos de ser escravos de Deus,
escravos de Jesus Cristo, escravos da ideal beleza de Maria, nós que nos
gloriamos de ser escravos do nosso dever, escravos da honra, escravos de uma
beleza efêmera às vezes?
Jesus Cristo e a sua Santíssima Mãe não
estão infinitamente acima de todos esses passageiros encantos, que muitas vezes
nos atraem para o ilícito, ao passo que a beleza de nossa Mãe nos atrai para o
alto e nos transfigura?
IV
. Humildade e elevação
Mas não se esqueçam: o que nos eleva e
transfigura é o que nos humilha: “Qui se humiliat exaltatur”. E quanto mais profunda
for nossa humilhação, tanto maior será nossa elevação.
Desejais crescer na intimidade de Deus? Abaixai-vos
até o último grau; tornai-vos escravos...
Desenvolveremos mais tarde as belas e
animadoras conclusões que defluem deste princípio. Basta, por enquanto, ter indicado
e classificado a Santa Escravidão, seu fundamento e a retidão de seus termos e
de sua prática.
Concluamos com as palavras de São Luís
Maria Grignion de Montfort, o grande Apóstolo de Maria Santíssima:
“Atesto firmemente que, tendo lido quase
todos os livros que se referem à Mãe de Deus e conversado familiarmente com os
mais santos e sábios personagens destes últimos tempos, não conheci nem aprendi
prática para com a Santíssima Virgem semelhante à que vou expor, capaz de
exibir de uma alma os maiores sacrifícios por Deus, desapego de si mesma e de
seu amor próprio, mais fidelidade na conservação da graça, ou na aquisição
desta, que a una de modo mais perfeito e mais fácil a Jesus Cristo, e, finalmente
que seja mais gloriosa para Deus, mais santificante para a alma e mais útil ao
próximo” (Tratado da Verdadeira Devoção).
Paremos no pensamento da sublimidade
desta prática e peçamos a Deus a sua compreensão, pois é um segredo, e um segredo que não se revela senão às
almas humildes e generosas.
Oxalá sejamos deste número!
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