quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Escravos de Maria




CAPÍTULO VII
ESCRAVOS DE MARIA

Entramos no terceiro modo de dependência da Santíssima Virgem. Não satisfeitos com laços ordinários que nos unem a Ela como criaturas e como cristãos, almejamos confirmar este estado de dependência, dando-nos, como o amor se dá: sem reservas nem restrições.

O primeiro grau na Consagração voluntária à Santíssima Virgem e que serve de fundamento aos outros graus é conforme a palavra do Evangelho: “Quem se humilhar será exaltado”. Devemos humilhar-nos perante a Virgem Santíssima, para que Ela nos eleve até Jesus. Em outros termos: devemos proclamar-nos seus escravos, para que Ela nos eleve como filhos. Nada de mais ínfimo, nem de mais humilde que o escravo.

I. O que é a escravidão

Que é, em verdade, a escravidão de amor?

A escravidão é a dependência total e absoluta para com um senhor, de modo que o escravo não se pertença mais, mas fique sob o poder de seu dono, para que este se sirva dele à vontade e em proveito próprio.

O escravo – diz Monsenhor Pio – pertence completamente e para sempre a seu dono, com tudo o que possui, sem exceção nenhuma. Trabalha sem exigir nenhum salário, sem que o Senhor tenha sobre ele direito de vida e morte (a lei natural como também a mosaica e as leis modernas não reconhecem tal poder a não ser por um mandato especial de Deus, que é o Senhor da vida). Montfort se põe aqui simplesmente do ponto de vista do fato, conforme as leis civis dos países onde vigorava em seu tempo a escravidão. Seu intento, abstraída a moralidade do ato, é dar um exemplo de dependência total (nota da 4.ª edição). O servo, ao contrário, é livre; presta seus serviços por um salário durante um tempo determinado, reservando sempre para si o direito de mudar”.

Basta esta simples definição para convencermo-nos que somos não simplesmente servos de Jesus Cristo e de Maria Santíssima, mas verdadeiramente escravos. E notai que não é uma fórmula nova, suspeita ou inspirada por uma devoção repleta de entusiasmo sentimental... É o pensamento fundamental da religião; ideia do Santo Batismo, que é o que há de mais radical em nós, como cristãos, (cf. Lhomeau, op. cit.). Montfort salienta três espécies de escravidão, ou, ao menos, três títulos que motivam esta dependência de Deus:

O primeiro – diz ele – é a escravidão por natureza; todas as criaturas são escravas de Deus neste sentido.

O segundo é a escravidão por constrangimento, em que alguém é reduzido à servidão, seja por violência, seja por uma lei justa ou injusta. Tal a escravidão dos demônios e dos réprobos.

O terceiro, enfim, é a escravidão por amor, ou por livre vontade. Esta é a mais gloriosa para Deus, que vê o coração e que se chama o Deus do coração ou da vontade amorosa.

Em resumo, e como aplicação destas três espécies de escravidão: todas as criaturas são escravas de Deus pelo primeiro modo; os demônios e réprobos, pela segunda; os justos e santos, pela terceira.

II. Significação do termo

Praticamente esta devoção da Santa Escravidão não é outra coisa, senão a ratificação, por livre escolha, do que já somos por natureza, isto é que constitui a glória e a felicidade dos justos e santos.

O sentido atual da palavra servo é recente; antigamente só se conhecia o senhor e o escravo. É neste sentido que se devem tomar as palavras latinas: servus – ancilla, empregadas outrora.

Quando os profetas designam o Messias como Servo de Deus (“Servus Dei”); quando São Paulo nos ensina que Jesus Cristo tomou a aparência do servo (“formam servi accipiens”); quando a Virgem Santíssima se intitula: “a serva do Senhor” (“ancilla Domini”); quando o grande Apóstolo dá a si mesmo o nome de servo de Cristo, etc., todos empregam esta palavra no sentido de escravo.

Sou a escrava de Cristo – dizia Santa Ágata – e por este título me declaro de condição servil”.

Para ser devoto escravo do Filho – escreveu Santo Ildelfonso – suspiro por tornar-me fiel escravo da Mãe”.

E São Bernardo: “Sou um vil escravo, para quem é honra demais servir, como tal, o Filho de Maria”.

Assim fala grande número de santos e de piedosos, sábios, como São Pedro Damião, Santa Teresa, São João Eudes, Venerável Olier, Padre de Condren, etc. A tão estimada oração de Santo Inácio: “Recebei, Senhor, minha liberdade”, bem como a do Pe. Zucchi: “Ó minha soberana...”, não são mais que fórmulas expressas da Santa Escravidão.

Os soberanos Pontífices sancionaram estas fórmulas. Urbano VIII, em 1636, aprovava os Cônegos do Espírito Santo, que se consagravam na qualidade de escravos a Jesus e Maria.

Leão XIII, em 1887 aprovou igualmente os “Escravos do Sagrado Coração”, e enriqueceu de indulgências uma congregação inspirada por Jesus Cristo a Santa Margarida Maria, que termina dizendo: “Quero fazer consistir toda a minha felicidade em viver e morrer como sua escrava”.

III. Escravo e amigo

A escravidão não está em oposição com o espírito de infância e de amor que anima o Cristianismo. Jesus disse: “Não vos chamarei mais servos, porém amigos”.

Isto, porém, nada prova contra esta devoção.

Quando um príncipe, pela amizade que tem a um de seus escravos, cumula-o de benefícios e o chama seu amigo, deixando-o no estado onde se acha, não deixa aquele de ser escravo, apesar do título de amigo do príncipe. Seu dono pode libertá-lo, sem dúvida.

Servindo-nos da comparação, somos como escravos diante de Deus. Deus, entretanto, não pode libertar-nos, pois que nossa escravidão está essencialmente ligada à nossa condição de criatura. Como o escravo feito amigo de seu príncipe, podemos tornar-nos “Amigos de Deus”, sem cessar de sermos escravos (cf. Franzelin: De Verbo Incarnato – Thes. 38. teol. 2).

As odiosas e abomináveis lembranças do paganismo desacreditaram a palavra escravidão; mas não queremos dizer que, preconizando a ideia de nossa servidão para com Deus, não repudiamos a tirania de muitos donos e a degradação dos escravos. Estas foram circunstâncias acidentais, que de nenhum modo entraram na essência desta condição.

Coraríamos de ser escravos de Deus, escravos de Jesus Cristo, escravos da ideal beleza de Maria, nós que nos gloriamos de ser escravos do nosso dever, escravos da honra, escravos de uma beleza efêmera às vezes?

Jesus Cristo e a sua Santíssima Mãe não estão infinitamente acima de todos esses passageiros encantos, que muitas vezes nos atraem para o ilícito, ao passo que a beleza de nossa Mãe nos atrai para o alto e nos transfigura?

IV . Humildade e elevação

Mas não se esqueçam: o que nos eleva e transfigura é o que nos humilha: “Qui se humiliat exaltatur”. E quanto mais profunda for nossa humilhação, tanto maior será nossa elevação.

Desejais crescer na intimidade de Deus? Abaixai-vos até o último grau; tornai-vos escravos...

Desenvolveremos mais tarde as belas e animadoras conclusões que defluem deste princípio. Basta, por enquanto, ter indicado e classificado a Santa Escravidão, seu fundamento e a retidão de seus termos e de sua prática.

Concluamos com as palavras de São Luís Maria Grignion de Montfort, o grande Apóstolo de Maria Santíssima:

Atesto firmemente que, tendo lido quase todos os livros que se referem à Mãe de Deus e conversado familiarmente com os mais santos e sábios personagens destes últimos tempos, não conheci nem aprendi prática para com a Santíssima Virgem semelhante à que vou expor, capaz de exibir de uma alma os maiores sacrifícios por Deus, desapego de si mesma e de seu amor próprio, mais fidelidade na conservação da graça, ou na aquisição desta, que a una de modo mais perfeito e mais fácil a Jesus Cristo, e, finalmente que seja mais gloriosa para Deus, mais santificante para a alma e mais útil ao próximo” (Tratado da Verdadeira Devoção).

Paremos no pensamento da sublimidade desta prática e peçamos a Deus a sua compreensão, pois é um segredo, e um segredo que não se revela senão às almas humildes e generosas.

Oxalá sejamos deste número!

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